quarta-feira, 14 de abril de 2010

3ª pessoa do singular.

Acordou no meio da noite. Como de costume. Mas, dessa vez, a sensação era de que deveria se esforçar para entender como a enxergavam - se é que alguém realmente a via. Essa era uma antiga obsessão. Uma antiga obsessão masoquista e doentia - pois fantasiar distorções a seu respeito era um artifício de auto-destruição.
Sentia como se precisasse do olhar do outro para confirmar sua existência. Era incapaz de conceituar a si própria. Ela sempre deixava que seus pensamentos se perdessem em outros pensamentos - até que eles a tornassem um ser amorfo e egoísta. Não estava livre de seus vícios.
Quando criança, achava estranho não conseguir enxergar o próprio rosto. Afinal, não somos nossa cabeça? Ali onde se concentram os sentidos e as impressões, o próprio raciocínio. Achava que se deixasse entrar água em seus ouvidos, seu cérebro iria ser lavado - e as coisas ruins se afogariam e iriam embora assim que ela chacoalhasse a cabeça para cima e para baixo.
Mas sua madrugada era como uma sala de espelhos. Daqueles que engordam, esticam, misturam. Era impossível achar o espelho da realidade. Era impossível congelar as frases emitidas por outras pessoas na tentativa de decifrá-la. Tudo tão doído e questionável.
De repente, acordou. E lá estava seu gato esfregando a cabecinha em pedido de carinho. Seu gato de olhar compenetrado que podia durar horas, dias. Aquilo era a grande questão: era impossível imaginar o que o gato imaginava sobre ela. Ela nunca foi gato para tentar entendê-lo. Então o olhar era vazio e simples. Era ela e o gato se olhando como realmente são. Nada de críticas ou elogios. E o reflexo naquele amarelo esverdeado nem a incomodavam mais.
Acomodou-se junto ao corpinho miúdo. Afagou os pelos negros e macios. Pensou nos planos para o dia seguinte e voltou a dormir.

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